terça-feira, 11 de setembro de 2012

Olho cerrado


Cláudio Motta - 11/09/2012
Bioma da porção central do país sofre perda de biodiversidade, desmatamento e ainda luta pelo reconhecimento de sua importância.  Faltam medidas de preservação ambiental

Cláudio Motta

A capacidade de adaptação do Cerrado ao clima é tão grande que suas árvores chegam a ser chamadas de floresta ao contrário.  Algumas plantas têm raízes mais longas do que o tamanho do caule e dos galhos - como se estivessem de cabeça para baixo -, conseguindo, assim, acessar a água em grandes profundidades.  O mecanismo é tão eficiente que outro apelido é o de berço das águas do Brasil.  Suas nascentes e cachoeiras abastecem os principais rios do país e movem numerosas hidrelétricas.  A paisagem é marcada pela grande biodiversidade, mesmo quando ocorrem queimadas.  Ante o fogo, vegetais desenvolveram casca grossa e há sementes que conseguem germinar em meio ao intenso calor.  Contra o desmatamento provocado pelo homem, porém, o bioma ainda não achou defesa.

O Cerrado é a principal fronteira da expansão agrícola do país.  Mesmo tendo suas áreas protegidas consideradas Patrimônio da Humanidade pela Unesco, e apesar de 11 de setembro ser, desde 2003, o Dia Nacional do Cerrado, sua vegetação nativa é a origem de metade das quase dez milhões de toneladas de carvão vegetal, grande parte consumidas pela siderurgia.  Além disso, o bioma sofre com o desconhecimento.  Grande parte dos brasileiros o descreve como um lugar feio, com árvores retorcidas, cujo aspecto é árido, monótono, sem valor, de acordo com Donald Sawyer, assessor sênior da ONG Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), organização que faz parte da Rede Cerrado.

- A Amazônia já tem sua identidade própria forte, mas o Cerrado não.

Quando observamos ambos os biomas, o Cerrado tem muito menos visibilidade - comparou Sawyer, sociólogo americano que vive há mais de 40 anos no Brasil.  - Quem conhece melhor o Cerrado começa a gostar, a amar e a querer sua preservação.  O bioma abriga cachoeiras, plantas incríveis e bichos fascinantes.

Para debater estratégias de preservação, trocar experiências e chamar a atenção para o bioma, a Rede Cerrado, em parceria com a Fundação Banco do Brasil, promove, a partir de amanhã, o VII Encontro e Feira dos Povos do Cerrado.  Até domingo, no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, haverá manifestações culturais, feira de produtos sustentáveis.

A ideia é reunir um grande número de representantes indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, agricultores familiares e integrantes de ONGs.

- O Cerrado precisa ter mais destaque no mapa do Brasil e do mundo.  Ele é desconhecido, esquecido e, até mesmo, sacrificado em nome de outros biomas brasileiros.  Os olhos do mundo estão na Amazônia - ressalta Sawyer.  - De uma área de dois milhões de quilômetros quadrados, a metade já foi desmatada.

A parte que restou abriga ainda uma riqueza biológica de fauna e flora que pode ser usada por agricultores familiares e povos tradicionais.  Eles são os guardiões das florestas, porque produzem de maneira sustentável.

Mas precisamos aliar o conhecimento tradicional às novas tecnologias.

As características do solo no Cerrado fazem com que 60% das terras sejam aptas a receber a agricultura mecanizada.  Esta é uma das explicações para o fato de que 850 mil quilômetros quadrados sejam ocupados por culturas ou pastagens, de acordo com dados do WWFBrasil.

Deste bioma, saem 25% dos grãos e 40% das cabeças de rebanho bovino.  Além do solo, é a água que permite tanta produtividade.

As nascentes do Cerrado abastecem três aquíferos e seis das oito grandes bacias hidrográficas brasileiras: Amazônica, Tocantins, Atlântico Norte-Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná-Paraguai.

- A água do Cerrado tem grande relevância tanto no sentido energético, já que nossa matriz é hidrelétrica, quanto para o abastecimento humano - diz Júlio Cesar Sampaio, analista de conservação do Programa Cerrado e Pantanal do WWF-Brasil.

Para chegar ao Brasil Central, a umidade se vale dos ventos e da evapotranspiração das plantas, que criam o fenômeno dos rios voadores.

Sem a cobertura vegetal, o fluxo de água pode ficar seriamente comprometido, ressaltam os especialistas.

- Água não sobe morro.  Ela chega pela atmosfera e depois é distribuída para as principais bacias hidrográficas do país.  Se houver mais desmatamento na Amazônia e no Cerrado, este fluxo de água pode ser reduzido - explica Donald Sawyer.

Ambientalistas também denunciam falta de mecanismos legais de proteção da floresta.

Nesta região, é permitido o desmatamento de 80% das propriedades rurais, enquanto que, na Amazônia, a lei restringe a derrubada de apenas 20%.  Também segundo informações do WWF-Brasil, 20% da vegetação ainda permanecem intactos.

- Cerca de 5% da biodiversidade mundial estão no Cerrado, que ocupa 25% do território nacional, mas apenas 3% estão em áreas efetivamente protegidas em unidades de conservação.  Proteger este bioma é um grande desafio - afirma Sampaio.

Muitas das espécies do Cerrado sequer foram ainda identificadas por cientistas.  Cerca de 11,6 mil plantas do bioma já foram descritas por pesquisadores, sendo que mais de cinco mil delas são endêmicas, ou seja, não existem em outras regiões.  A fauna também é muito rica.  Só de insetos, há 90 mil espécies, sendo que 13% das borboletas, 35% das abelhas e 23% dos cupins dos trópicos.  Entre os animais mais emblemáticos, destaque para o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tatu-canastra (Priodontes giganteusso), a ema (Rhea americana) e a seriema (Cariama cristata).

A baixa extensão de áreas preservadas representa grande risco para a biodiversidade.

Estimativas indicam que 20% das espécies exclusivas do Cerrado já não existem mais em unidades de conservação.  São deste bioma 132 plantas e 137 animais que estão na lista brasileira ameaçada de extinção.  Estes números representam cerca de 25% do total das espécies em risco no país.

Há soluções, dizem ambientalistas da Rede Cerrado, que se inspiram na grande capacidade de adaptação do bioma.  O caminho, para eles, é conter a expansão da agricultura de alta produtividade em áreas que ainda preservam a cobertura florestal e controlar com rigor o uso de agrotóxicos.  As culturas de soja, algodão, eucalipto e cana-de-açúcar, por exemplo, têm espaço para avançar nas áreas de pastagens, que podem ser reduzidas com técnicas que permitam o aumento do rebanho, diminuição da erosão do solo e das emissões de gases de efeito estufa.

Além disso, os ativistas defendem a importância dos chamados povos e comunidades tradicionais, que se comprometeriam a fazer uso sustentável da biodiversidade e a praticar a agroecologia.  Os movimentos sociais estimulam a produção e comercialização de produtos como a castanha de baru, conserva de pequi e doce de buriti.  Os artigos fitomedicinais e as cadeias ligadas à indústria de cosméticos também são incentivados.

- Entre as maiores dificuldades que enfrentamos para colocar as mercadorias dos povos da floresta nos comércio está justamente os atuais marcos regulatórios.  Muitos deles são bastante hostis, e acabam, no final, atrapalhando o pequeno produtor a vender seu produto formalmente no mercado - analisa Sawyer.O Globo

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