segunda-feira, 9 de março de 2015

Barragem de estreito: a tensão entre desenvolvimento econômico e comunidade tradicional


 
Resumo: Pretende-se analisar no decorrer do presente texto sobre a tensão entre o imperativo desenvolvimentista em que o Piauí, assim como o restante do Brasil, está inserido e a necessidade de preservação do modo de vida das populações tradicionais do Estado. Para melhor análise do fenômeno, se focará o projeto de construção da barragem de Estreito que será situada no rio Parnaíba fronteira natural entre os Estados do Maranhão e Piauí. Deter-se-á maior atenção na reflexão sobre determinadas categorias envolvidas na questão, tal como: os Estudos de Impacto Ambiental (EIAs), a justificação da obra por meio do discurso de bem da maioria em detrimento da minoria, a desconsideração ou relativização de direitos de determinada parcela da população pelo Estado, entre outras questões que serão expostas e aprofundadas no desenrolar da discussão.[1]
Palavras- chave: Hidrelétrica de Estreito. Comunidades tradicionais. Direitos.
Resumen: El objetivo es analizar em el curso del texto la tensión entre el imperativo del desarrollo que el Piauí, al igual que el resto de Brasil, está insertado y la necesidad de preservar el modo de vida de las populaciones tradicionales del Estado. Para analizar mejor el fenómeno se centrará en el proyecto de construcción de la presa Estreito que se encuentra en el río Parnaíba, frontera natural entre los estados de Maranhão y Piauí. Se pondrá más atención en la consideración de ciertas categorías involucradas en el tema, tales como: los Estudios de Impacto Ambiental (EIA), la justificación de la obra a través del discurso de bien de la mayoría en detrimento de la minoría, la ignoracion o relativisação de los derechos de parte daterminada de la populacion por el Estado, entre otros temas que se exponen y se profundizó en el curso de la discusión.
Palabras- clave: Estreito hidroeléctrica. Las comunidades tradicionales. Derechos.
Sumário: Introdução. 1. Populações tradicionais quanto legitimadoras e participantes do direito e do Estado. 1.1. Participação e consenso: o direito à discussão. 2. Estudos de impactos ambientais (EIAs): entre insuficiência e necessidade. 3. O autocontrole do Estado e a vigilância da Sociedade Civil. 4. A necessidade de pluralização do Judiciário para atender à pluralidade social. Conclusão. Referências.
Introdução:
O Piauí vive um momento único em sua história, onde é tratado como uma das últimas fronteiras de desenvolvimento, sendo que os recursos geológicos e ambientais estão para ser explorados sem controle rígido por parte do Estado, em razão de haver o objetivo de desenvolver economicamente a região.  No entanto, nos locais de exploração mineira, assim como onde se pretende a instalação de hidrelétricas existem famílias e comunidades que possuem uma ligação diferenciada com o ambiente circundante, as chamadas comunidades tradicionais, que possuem garantias legais iguais a qualquer outro cidadão do país, além de garantias especiais voltadas a essa população. Sendo que em nome do bem comum da nação o Estado pretende justificar o desrespeito das referidas garantias, como se o indivíduo tradicional não fosse sujeito constitucional, ou seja, protegido por leis perante as quais todos devem ser iguais.
Mas existem determinados mecanismos, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), utilizados para que a ação do Estado não seja arbitrária e que se torne o mais exata possível, impedindo desastres ambientais e sociais. Porém, os instrumentos de previsibilidade se tornam falhos em razão do modo como são feitos, além das condições em que são feitos, pois o EIA é um documento que procura prever os impactos da instalação de determinado empreendimento a médio e longo prazo. Mas como veremos mais adiante, é impossível presentificar o passado ou o futuro sem haverem perdas, uma vez que sempre haverão pontos que não foram considerados que farão diferença na totalidade dos resultados.
Fundamentado em estudos ambientais falíveis e insuficientes, o Estado se presta a valorar e escolher entre o direito de um grupo minoritário que será afetado pelo empreendimento e outro que propõe e justifica o projeto em virtude de possíveis necessidades. Não pretendo afirmar que não haja necessidade de energia elétrica ou de outros tipos de serviços, mas mesmo para atender à carência da economia e da sociedade por energia elétrica não é justificável que se viole o direito de parte da população. Com relação ao Estado é necessário que se entenda que o mesmo é formado por diversas instituições que divergem e convergem em muitos pontos, podendo ocorrer que o próprio Estado proponha o empreendimento, poder Executivo, ao passo que determinado órgão, Ministério Público, fiscaliza e denuncia atividades ilegais do próprio Estado, tal como o caso da Ação Civil Pública encaminhada pelo Ministério Público pedindo a revisão do projeto de implantação do complexo de barragens do Médio Parnaíba, ou como o caso recente onde o TCU exige justificativa do Planalto em razão da inferioridade do valor da indenização às famílias piauienses quando comparado com o valor proposto às famílias sul- mato-grossenses.
Desse modo se percebe que a máquina estatal funciona, apesar das imperfeições, de forma a controlar e limitar suas próprias atitudes, o entanto, é óbvio que o mecanismo que se auto- fiscaliza e denuncia suas falhas a si mesmo pode vir  a apresentar imperfeições, fato que se confirma muitas das vezes, não cabendo ao cidadão se tornar alheio das questões que ocorrem no seu entorno. Desse modo, é essencial o acompanhamento da população das atitudes do Estado, uma vez que o mesmo é criado e mantido pela comunidade civil, portanto não podendo esta ser subjugada por sua própria criação. Em suma, devesse exigir que o Estado desenvolva suas funções de modo a beneficiar o cidadão, uma vez que este é ao mesmo tempo o eleitor que o legitima e o contribuinte que o mantém.
1. Populações tradicionais quanto legitimadoras e participantes do direito e do Estado.
A barragem de Estreito afetará os núcleos urbanos de Amarante e Floriano no Piauí, submergindo uma área de 77 km² (Projetec, 2009), havendo, como já citado, inúmeras famílias que habitam a localidade a dezenas de anos. Sendo que para a construção do Aproveitamento Hidrelétrico de Estreito (AHE Estreito) será necessária a desapropriação da população do local de impacto direto, área que será submersa, destruindo o forte vínculo existente entre a comunidade tradicional e o meio ambiente. No entanto, existem normas e procedimentos legais que devem ser observados na desapropriação das famílias, tal como a convenção 169 da OIT que trata da consulta à comunidade sobre a concordância ou não em relação à instalação do empreendimento, assim como em relação ao seu deslocamento, outras normas que protegem as comunidades tradicionais são os artigos 5º, 215 e 216 da Constituição Federal que afirma a proteção da cultura material e imaterial pelo Estado.
Mas as supracitadas normas são valoradas como secundárias em relação ao interesse público em possuir energia elétrica. Porém, segundo Bobbio (2010) as normas são legítimas por fazerem parte do código de leis de um território, ou seja, os direitos das comunidades tradicionais são tão legítimos quanto o direito da população em possuir energia elétrica, não cabendo a relativização de um perante o outro. Poderia, no entanto, aparecer o argumento de que Bobbio hierarquiza as normas do ordenamento sendo que umas são mais importantes que outras e que por essa razão o direito da maior parte da população teria maior peso que o direito da população que vive no local de instalação da barragem, mas segundo o autor:
“O grau mais baixo [do ordenamento] é constituído pelos atos executivos: esses atos são apenas executivos e não produtivos. O grau mais alto é constituído pela norma fundamental […]: ela é apenas produtiva, e não executiva.” (BOBBIO, 2010, pág.: 213) (destaque nosso)
Em outras palavras, a decisão do Executivo em construir a barragem é inferior em relação aos princípios constitucionais, uma vez que o ato executivo deve apenas executar as normas constitucionais, torná-las concretas, desse modo há um desacordo entre a norma inferior e a norma superior, onde deve prevalecer a norma superior.
Tendo como foco ainda a citação de Bobbio, é interessante observar que se menciona “norma fundamental” que seria a norma legitimadora do poder constituinte e, por conseguinte, da constituição. Mas segundo a teoria de Marx (2010), a “norma fundamental” seria um meio de alienação para esconder o verdadeiro fundamento das leis e do Estado, o povo. Desse modo se deduz que o interesse do povo, sendo ele minoria ou maioria, deve prevalecer sobre as decisões do Executivo, uma vez que é o povo que legitima o Estado. Assim sendo, é absurda a ideia de que a população tradicional seja desconsiderada na concepção e futura execução do projeto do AHE Estreito, em virtude dessa parcela da população legitimar o estado, por meio do voto, além de mantê-lo por meio dos tributos.
1.1. Participação e consenso: o direito à discussão
Outro aspecto importante a ser analisado na questão dos direitos das comunidades tradicionais é o fato que o Estado é fundado em base democrática que determina a participação de todas as pessoas no governo da nação, desse modo, todos tem direito a manifestação, principalmente com relação a ações que terão reflexo direto na vida do indivíduo ou da população. É isso que prega a dita convenção 169 da OIT, quando determina a consulta prévia às comunidades tradicionais no que concerne a qualquer ação que as afete diretamente, mas em virtude de não haver conhecimento da comunidade sobre os impactos causados em seu modo de vida é inviável o consentimento da mesma frente o empreendimento. (Ação Civil Pública, nº. 1.27.000.000531/2010-83)
Segundo Habermas (2010) é impossível haver discussão sem igualdade entre as partes conflitantes, desse modo é impossível haver diálogo entre a comunidade e o Estado, uma vez que o último não transmite as informações, ou quando realiza audiências públicas as faz sem o direito de participação da comunidade, além das informações não serem repassadas de forma a permitir a compreensão do que se diz por aqueles que não dominam noções técnicas sobre a temática das barragens, implicando a não existência de comunicação, havendo sim uma farsa com a finalidade apenas de passar a falsa impressão à população e comunidade internacional, de que o empreendimento será implantado de acordo com as convenções internacionais.
Poder-se-ia, no entanto, argumentar que a convenção 169 da OIT aborda um conteúdo vital para a relação entre a sociedade e o Estado, mas que de nada vale sua aplicação, uma vez que não possui poder coercitivo sendo, desse modo, um enunciado que apenas afirma o que se deve fazer mas que não obriga a ação da forma especificada. A teoria do ordenamento de Bobbio (2010) discorda dessa posição, uma vez que defende a coerção como sendo um atributo do ordenamento e não da norma, desse modo, a convenção 169 da OIT está associada a normas coercitivas que lhe tornam obrigatória e coercitiva para os indivíduos, assim como para o Estado.
Mas ainda haveria o argumento de que a convenção 169 da OIT é um norma emanada de um órgão internacional e por isso não seria válida em território nacional, sendo que o Brasil é um país soberano. Segundo Habermas (2010), as normas internacionais realmente não são válidas por si no território de países soberanos por não houve um poder cogente internacional, mas a partir do momento que o Legislativo e/ou executivo sancionam a norma internacional, a mesma passa a fazer parte o ordenamento como as demais norma nacionais.
Pelo exposto é notável que a esfera dos direitos privados, direitos do indivíduo, devem ser respeitados mesmo quando confrontam a esfera de direito público, pois  só é justificável que o último intervenha no primeiro em casos que se objetive a garantia da liberdade, ou seja, caso uma ação individual venha ameaçar a liberdade de outro, cabe à esfera de direito público intervir na ação individual (HABERMAS, 2010). Sendo que no caso em análise o que o Estado se propõe a proteger com a violação da esfera de direitos privados da comunidade é o desenvolvimento econômico e não a liberdade dos indivíduos, tornando a decisão uma arbitrariedade perante os princípios democráticos, bem como aos direitos individuais.
2. Estudos de impactos ambientais (EIAs): entre insuficiência e necessidade
Como já citado, o Estado busca métodos para tentar prever e amenizar os impactos dos empreendimentos que propõe, sendo que um desses métodos são os Estudos de Impactos Ambientais (EIAs). Tal documento é utilizado para o licenciamento da obra, no entanto, a leitura do EIA deixa evidente as insuficiências do referido estudo, desse modo, a decisão justificada com o referido documento é comprometida. Mas a questão da decisão judicial baseada no EIA vai além do fato de o estudo ser ou não satisfatório do ponto de vista  da abordagem do conteúdo, pois as decisões judiciais devem ser fundamentadas no direito e não em outras áreas de conhecimento, por mais que possa ser auxiliada pelas mesmas.
Os estudos de impactos ambientais são baseados na aplicação de métodos científicos com a finalidade de aferir e determinar os tipos de impactos decorrentes da instalação de determinado empreendimento em determinado local. Mas um dos problemas da própria lógica do EIA é o fato de ser impossível presentificar o passado ou o futuro sem que hajam perdas vitais de informações que influenciaram ou influenciarão o resultado dos fatos. Em suma, sempre que se pensa o passado ou o futuro se faz com a visão do presente o que impossibilita se ter uma visão geral e real do fato passado ou futuro. (LUHMANN, 1983)
Além da insuficiência da própria lógica do EIA, existem aquelas decorrentes de insuficiências técnicas tais quais as apontadas pela Ação Civil Pública (nº. 1.27.000.000531/2010-83), estando entre as principais a avaliação quantitativa e qualitativa da população do local. Em outras palavras, o levantamento da quantidade de famílias se torna impreciso, uma vez que foi realizado com base no método de amostragem, desse modo, caso haja heterogeneidade da densidade demográfica no território atingido pela barragem haverá discordância entre a quantidade de população apontada pelo estudo e a realmente existente no local. Já a questão da insuficiência qualitativa das informações, significa que não foi determinado de forma satisfatória o caráter tradicional das comunidades identificadas, sendo que no EIA se faz menção apenas à comunidade Mimbó (Amarante-PI) informação contestada pela Fundação Palmares que  afirma a existência de outras comunidades quilombolas no local sendo elas: Caldeirão, Carão, Araras, Lagoa, Várzea dos Cocais, Gameleira, Remanso, Malhadinha, Conceição, Bela Vista, Lages e Periperi.
Tendo em vista as falhas apontadas, é necessário salientar a necessidade de que nas decisões administrativas, no caso da licença concedida pelo IBAMA, e principalmente nas decisões monocráticas deve-se basear o veredito nas normas vigentes do País e não em pareceres técnicos de outras áreas do conhecimento, é óbvio que o juiz ou administrador deve levar em conta os conhecimentos de outras áreas (no caso: biologia, antropologia, etc.) mas deve-se ater às normas legais que regulamentam as ações do indivíduos e do próprio Estado. Kelsen ratifica tal assertiva no momento em que defende que:
“A natureza é […] uma determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo um princípio que designamos por causalidade.
Somente quando a sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural.” (KELSEN, 1998, p. 85 e 86)
Desse modo, a decisão administrativa ou monocrática não deve se fundamentar em outras áreas de conhecimento que não a jurídica, uma vez que as relações interpessoais e entre o Estado e o indivíduo são normativamente determinadas, não sendo possível sua compreensão e determinação por meio de ciências causais (não normativas).
Apesar das críticas feitas ao EIA é necessário dizer que não existe outro método que o substitua e, que apesar de suas falhas, continua sendo a alternativa até o momento no que toca a questão de planejamento e avaliação de impactos dos empreendimentos. Porém, todo o método é falho, tendo em vista que vivemos uma crise paradigmática que tem por um de seus fundamentos a crise da crença da ciência como infalível e redentora da humanidade, dessa forma, para que se reduza a possibilidade de erros é necessário que haja constante vigilância das atividades do Estado tanto pela sociedade civil quanto pelas instituições corretoras do Estado, para que as falhas dos procedimentos sejam apontadas motivando a criação de soluções para as mesmas, tornando o sistema cada vez mais preciso, sabendo que nunca se  atingirá a perfeição.
3. O autocontrole do Estado e a vigilância da Sociedade Civil
Quando se afirma o Estado determinando uma ação não consentida ou até mesmo não aceita pela sociedade é como se fosse algo natural, desse modo, pode-se pensar que o “Estado” deve mandar e os súditos devem obedecer irrestritamente ao que é posto. No entanto, segundo Marx:
“O verdadeiro pensamento é: o desenvolvimento do Estado ou da constituição política em distinções e em sua realidade é um desenvolvimento orgânico. O pressuposto, o sujeito, são as distinções reais ou os diferentes lados da constituição política. O predicado é a sua determinação como orgânicos. Em vez disso, a Ideia é feita sujeito, as distinções e suas realidades são postas como seu desenvolvimento, como seu resultado, enquanto, pelo contrário, a Ideia deve ser desenvolvida a partir das distinções reais.” (MARX, 2010, p. 33)
O que Marx expressa no fragmento é que a sociedade civil, assim como a família são as fundadoras do Estado, ou seja, a sociedade e a família são o sujeito o qual dá origem ao predicado que no caso é o Estado. Sendo que a ordem natural é que o sujeito determinasse as ações do predicado, mas o que ocorre é uma inversão, onde o sujeito passa a ser subordinado à sua criação, o Estado. Em razão desse fenômeno é que ocorrem dissensos entre a vontade da população e a atuação do Estado.
Mas como vivemos em nação democrática , existem órgãos estatais que buscam o controle e regulação da atividade estatal, chegando a desenvolver as atividades do cidadão de fiscalizar e exigir a ação do Estado de acordo com suas expectativas, tal como afirma Habermas: “O sistema jurídico tira das pessoas jurídicas, em sua função de destinatárias, o poder de definição dos critérios de julgamento do que é justo e do que é injusto.” (2003, p. 151) No entanto, como essas instituições são integradas à lógica estatal citada nos parágrafos anteriores sua atividade se torna limitada e acaba por não desempenhar de forma adequada suas funções ou não surte efeito a sua ação reguladora, como o caso da Ação Civil Pública do MPF que aponta falhas graves e concretas no projeto de implantação do AHE Estreito e que não foram consideradas pelo Estado em sua decisão de manter a proposta e de dar continuidade a sua execução.
Desse modo, a população deve tornar-se consciente de sua vitalidade para a existência do Estado iniciando assim a reaproximação entre sujeito e predicado, estando o primeiro na posição de comando e determinação das ações do segundo. O meio de se alcançar tal nível de conscientização seria por meio da aprimoramento intelectual da sociedade, seja por meio da escolaridade do indivíduo, seja por via dialógica, onde o acúmulo e transmissão de experiências da relação entre o indivíduo e o Estado levariam a um consenso sobre os deveres do predicado para com o sujeito.
4. A necessidade de pluralização do Judiciário para atender à pluralidade social
A exposição anterior demonstra que um dos principais problemas da tensão entre a instalação do empreendimento e as famílias que residem no local seria a não sensibilização daqueles que deram as decisões administrativa e judicial- respectivamente a licença ambiental, concedida pelo IBAMA, e a decisão de manter o leilão das barragens mesmo com a denúncia de irregularidades feita pelo Ministério Público Federal-, ou seja, há todo um contexto a ser considerado, tal como a relação íntima entre comunidade e meio ambiente, que não foi tida como relevante pelo juiz. Desse modo, além de haver consciência, por parte da população de que o Estado tem obrigações para com seus cidadãos, existe o outro ponto que é o da formação do profissional do Direito.
No entanto quando se fala em modificar a formação do profissional do direito não se quer tratar da questão de acúmulo de conhecimento teórico e dogmático, mas se pretende apontar a necessidade de um ensino jurídico que permita a sensibilidade do profissional para que este possa ter noção dos valores envolvidos nos casos a que se proponha analisar. Outro aspecto que merece atenção no ensino jurídico considerado latu sensu seria a pluralidade de origens dos graduandos do curso de direito para que o judiciário possa atender a pluralidade das demandas que lhe chega, ou seja, o peso de um ato de descriminação racial é entendido de forma mais precisa por um profissional do direito que tenha tido algum contato com os aspectos negativos do racismo, do que por um profissional que nunca tenha tido contato direito com o fenômeno.
Para que se possa tratar de uma reforma do ensino jurídico no que concerne à conservação da sensibilidade do indivíduo é necessário que se identifique as causas que levam ao errigecimento dos sentimentos do profissional do direito. Warat denomina esse processo de perda da sensibilidade como “castração”. Segundo o mesmo autor uma das causas da castração seria:
“Na castração simbólica, o que há de mais vital não é a poda, a perda, mas sim a saturação, o excesso. Os homens estão tão repletos de esteriotipações, de prêt-à-parler, das versões singulares e lineares que lhes são impostas, que não há espaço dentro deles para a criatividade, para a autonomia, para a compreensão não-oficial dos sentidos, o que viria a construir o plural das significações.
Talvez fosse bom lembrar que, para mim, com a liberação da castração simbólica, adviria como consequência a proliferação do plural das significações, pois o plural já existe. E o que há nos castrados é o terror de aceitação desse plural, ou talvez mais simplesmente o puro terror diante do plural. Daí a impossibilidade, para eles, da autonomia.”
(WARAT, 2004, pág.: 66)
Desse modo a causa da “castração” é o excesso de conhecimento dogmático acumulado pelo profissional durante sua formação acadêmica que impede a percepção do mundo na sua pluralidade, implicando assim em uma visão uniforme da realidade plural. Os administradores e juízes que analisaram a questão das comunidades atingidas pela barragem de Estreito, não consideraram a diferença entre as relações das comunidades tradicionais com o meio ambiente, sendo que são muito mais profundas e vitais para a população do que para a sociedade industrial- capitalista, determinando a decisão judicial, bem como a administrativa, de forma que não há contemplação das peculiaridades da população tradicional tronando injusta a decisão, uma vez que o princípio da isonomia prega que os iguais sejam tratados como iguais e os diferentes como tal, ou seja, as diferenças, pluralidades, devem ser contempladas com decisões que as considere.
Uma das alternativas para que o ensino jurídico reduza seu poder de “castração” é a modificação da visão do direito como algo à parte a sociedade para um entendimento do direito como sendo um dos elementos constitutivos da mesma. Desse modo se pretende explicitar a necessidade de se criar métodos de  ensino que associem o conhecimento jurídico às suas consequências sociais, para que se mantenha a percepção de que a decisão jurídica não tem peso por si mesma e sim nas consequências que a mesma causará a seus destinatários. Outra alternativa à visão monolítica da sociedade pelos profissionais do direito seria a pluralização dos ingressantes no curso de direito, dito de outro modo, permitir o acesso de integrantes de diferentes grupos sociais no curso de direito para que os mesmo ingressem nas carreiras jurídicas levando para o judiciário sua formação histórico- social para que o Judiciário possua parte da pluralidade social implicando na melhor solução das demandas da sociedade plural.
Um dos métodos de permitir a pluralização do Judiciário e, por consequência a adequação desse à pluralidade social, é o sistema de cotas, uma vez que por meio deste se permite o acesso ao sistema de ensino superior às população remanescentes de classes sociais de baixo poder aquisitivo, a negros, indígenas, em suma, a grupos que possuem vivências diversas daqueles pertencentes às classes média e alta que geralmente ocupam as cadeiras do curso de direito. Desse modo, se torna possível esperar que o judiciário decida de forma a atender as expectativas da sociedade, uma vez que para garantir o sentimento de justiça e segurança jurídica a decisão judicial ou administrativa não pode se desvencilhar do entendimento de justiça da sociedade.
Conclusão
Pelo exposto é necessário se retomar a discussão sobre a necessidade de consciência do indivíduo, no caso das comunidades tradicionais, sobre os seus direitos, assim como dos meios existentes para exigi-los, tal como ações civis públicas, entre outros. Porém, esse conhecimento, obviamente, não é algo nato ao indivíduo, sendo sim uma construção social, ou seja, é necessário que se possua acesso a tais informações para que haja efetivamente a noção de que a atuação do Estado é limitada em relação a seus cidadão e para que estes exijam esse limite do Estado perante o indivíduo.
Para tratar de um dos modos de conscientização dos povos tradicionais é necessário retomar a questão da ampliação e pluralização do ensino jurídico. Por meio do acesso de integrantes de grupos tradicionais (quilombolas, indígenas, etc.) no curso de direito e, com o retorno dos mesmos a sua localidade de origem, ocorre a difusão do conhecimento jurídico para a comunidade, ampliando os conhecimentos já existentes sobre as garantias que protegem o cidadão da ação eventualmente arbitrária do Estado. Assim sendo, é realmente necessário que existam políticas de inclusão dessas comunidades nos cursos de direito, seja por meio de políticas de cotas, seja por meio de cursos superiores voltados para esse público, entre tantos outros meios de permitir a formação jurídica das lideranças e população tradicional como um todo.
Outras formas de expandir o conhecimento jurídico às comunidades tradicionais seria a atuação de assessorias jurídicas e de grupos de extensão jurídica universitária na localidade, que por meio de atividades comunitárias- tal como discussões em rodas de conversa- objetivam construir, de modo conjunto com a população, o saber jurídico, sendo que ao longo do processo de construção do conhecimento se forneça as bases e princípios para que a comunidade possa ser autônoma na busca por saber e exigir seu direitos, não se tornando dependente do grupo de assessoria ou extensão.
Para que haja difusão ampla dos direitos dos indivíduos perante o Estado, seria essencial a incitação do debate social sobre direitos e sobre casos de desrespeito aos direitos individuais. Um exemplo seria a Campanha em Defesa das Águas, dos Povos e das Terras do Piauí, que teve por objetivo dar visibilidade à implantação de diversos empreendimentos no Estado, tal como a barragem de Estreito, que colocam em risco o modo de vida de populações tradicionais, assim como ocorre com a comunidade quilombola Periperi em Amarante-PI que é ameaçada pela barragem de Estreito.
Por meio da expansão do conhecimento jurídico, assim como pela discussão social sobre assuntos que envolvem violação de direitos, é que passa a existir a possibilidade de estreitamento dos laços entre os(as) cidadãos(ãs) e o Estado fazendo com que este se submeta à vontade dos primeiros, uma vez que a base sustentadora do Estado é a população que o legitima por meio da Constituição, que representa a essência do povo, bem como por meio das eleições democráticas onde a população pretende governar e legislar para si mesma. Em suma, com o conhecimento jurídico e a noção de ser a base sustentadora do Estado, o indivíduo e a população tradicional como um todo passam a exigir que o Estado cumpra suas obrigações, impedindo que ocorram decisões arbitrárias por parte do mesmo.

Referências:
Constituição Federal da República Federativa do Brasil, 1988;
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito; tradução: Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010, págs.: 185 a 234;
HABERMAS, Jügen. Direito e democracia: entre faticidade e validade, volume I; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, págs.: 113 a 168;
Inquérito Civil Público MPF/PR/PI nº. 1.27.000.000531/2010-83;
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, págs.: 62 a 72 e 79 a 91;
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, volume II; tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, págs.: 07 a 42;
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel; tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010, págs.: 27 a 77;
PROJETEC. Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Aproveitamento Hidrelétrico Estreito, Vol. I (Estudos Preliminares), 2009;
WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, págs.: 19 a 25 e 61 a 101.
 
Nota:
[1] Trabalho orientado pela Profa. Maria Sueli Rodrigues de Sousa: Doutora em Direito pela Universidade de Brasília- UnB, Brasil(2009), Professora Adjunto I da Universidade Federal do Piauí, Brasil
 

Informações Sobre o Autor

Yuri Rocha Lima dos Santos
Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí- UFP

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